Office in a Small City por Edward Hopper

O sísifo da Rua Rocha

Confunde as impressões que circulam por seu sangue com esse surdo fluir de líquidos na escuridão.
E adormece, sem entender.

Lá está ele, teimoso e feliz, com sua pesada caixa de livros ao ombro, ferindo-se a cada passo, mas sem se dar conta disso. O planeta gira; e, nesse momento, para esse rapaz, em sua pequena porção iluminada da Terra, é uma bonita manhã de sol.

São mais de cem exemplares, seu primeiro livro de contos, A canção de pedra, capa desenhada por ele mesmo, 125 páginas cada um, número que o agrada, mas que ainda é pouco: o livro seguinte, entusiasticamente rascunhado, noite após noite, será um romance de trezentas páginas, trezentas e tantas. Denso e dramático. Provocativo, atraente. Mas, por enquanto, tenho que me submeter a isso, pensa. E quase sorri.

Confirma a placa: Rua Rocha. Certo. Conforme o guia da cidade, consultado pouco antes de sair – não poderia tê-lo trazido junto, seria ainda mais peso, que esses guias equivalem a um grosso almanaque de antigamente, calculou com prudência, entre suas estratégias sempre bem elaboradas, revistas e também muito cuidadosamente premeditadas. De resto, tudo bem com o peso. Que importavam o tráfego ameaçador (não era tanto), as ladeiras íngremes (que o mapa não destacava) ou o crescente incômodo de um ferimento anunciado na base do pescoço, capricho da quina do papelão esgarçado? – se o que carrega ali são ovos e sementes, é a sua obra máxima. Sim, é de fazer chorar. E é mesmo, pois se ele próprio não se conteve ao reler certos trechos. Portanto, tudo isso já vale a pena. Já está de antemão e plenamente salva essa manhã especial, feliz e inspiradora, pela palavra. Por enquanto é isso, ele se diz, entendendo que é precisamente o que tem para fazer, o que deve fazer, em uma primeira investida desse sísifo iludido, audaz e previamente gratificado, avançando pela manhã de seu dia amplo, percorrendo a irrelevante Rua Rocha.

Desde que pressionou, canhestramente, as primeiras teclas daquela antiga máquina de escrever (cujas hastes de caracteres travavam ao se cruzarem em um mesmo ponto, encavalando umas nas outras e tendo de ser puxadas de volta com a ponta dos dedos), desde que ouviu o som das primeiras letras de fôrma ferindo o papel no cilindro à sua frente, alguma coisa muito maior do que sua razão passou a possuí-lo com fascínio. E tudo isso irá culminar nessa caminhada sob o sol, uma caixa de livros quase às costas, despertando a curiosidade dos que passam, o questionamento dos que o conhecem, o sarcasmo disfarçado dos que o compreendem e a piedade bondosa dos que ainda veem nele o menino datilógrafo, que não consegue crescer.

Por enquanto é isso, repete em silêncio, relembrando trechos dos contos. Por exemplo, o monumental A grande árvore da vida. Ou o onírico e filosófico Viagens, tão próprio a agradar a todos, qualquer que fosse a religião do leitor. O dramático Diversos caminhos do asfalto, em que o personagem morre tristemente, a um passo da tão sonhada liberdade. Também o melancólico Gino, que alertava a todos sobre a falta de visão das sociedades tradicionais, e mesmo o conto-título, A canção de pedra, que reitera a força do amor desafiando a eternidade. Não é pouco, afinal. Não mesmo. Mas recita-se, com uma forçada modéstia, que no momento é só o que pode oferecer a esse mundo que, naturalmente, planeja salvar. Não é tão difícil. É que falta gente como ele, que se disponha a escrever, sem medir sacrifícios. Escrever e salvar a todos pela palavra. Pensar em todos, escrever para todos. Lembrar a todos sobre o verdadeiro entusiasmo, que não pode morrer. Seus passos, cada vez mais pesados. Vai sorrindo, sozinho.

Apesar disso, uma sombra ergue-se, num instante, em sua memória fragmentada: seus textos acabam tristes. Estendem-se, demorados. Não têm muito de entusiasmo. (Ajeita a caixa sobre o ombro. Decide trocar de ombro.) Ou, quando têm, isso logo decai: os personagens se deprimem, se frustram. Depois, dá-se um jeito, no final. Mas… (Uma gota de suor desce-lhe pela lateral do nariz, fazendo cócegas.) Estranho, já que se havia motivado tanto ao escrevê-los. Bem, é preciso repensar esses aspectos em outra ocasião. Agora, vamos em frente. É uma agradável manhã de sol, como já visto. E, por enquanto, é isso.

O editor, indicado por uma amiga, irá se comprometer a distribuir o livro. É tudo de que ele precisa. Só falta esse próximo passo para revelar seus contos comoventes ao mundo, às pessoas de coração aberto, cada vez mais raras. Agora sim, seu livro estará nas estantes, nas prateleiras, sendo folheado, lido, admirado e, claro (esperamos que sim), comprado. Imaginando isto e aquilo, quase passa reto pela editora, sem perceber. Voltando uns passos, confirma o número da casa: sim, está certo. É aqui mesmo. Não há nenhuma placa ou parede pintada, só uma grade baixa, um espaço mal cimentado, que pode servir de garagem a céu aberto talvez, piso com recortes de tons diferentes e muitas rachaduras. Pouco à frente, uma porta de madeira, fechada. Claro, é uma questão de privacidade. Se todos os que passarem por aqui souberem dessa editora, exposta desse jeito, irão atulhar o departamento editorial com quantidades absurdas de originais o tempo todo, esse tipo de trabalho não é brincadeira. Vamos à campainha. Outra vez. Pode estar com defeito. O portãozinho da grade está meio aberto. O autor então passa por ele, fecha-o com cuidado atrás de si, entra, desce a caixa de livros ao chão com grande alívio, bate à porta.

O editor está sozinho (a secretária teve de sair, pagar umas contas). Ele é simpático, idoso, bem-educado. Com um minuto de conversa, dispôs a máquina de escrever à frente do visitante, um modelo de texto ao lado, o autor então tem que datilografar um contrato, cópia sob carbono, para a consignação dos livros. O valor da taxa de serviço não é tão alto. Além disso, pode ser pago em três vezes. Tudo bem, eu sei datilografar, termino logo.

“Eu também sou escritor, sabe?”, faz ele, tossindo um pouco. “Mas os meus livros não têm boa aceitação no mercado, compreende? São para poucos, compreende? Contêm muita experiência de vida. São como um remédio amargo, mas necessário para as pessoas. Está conseguindo entender as letras miúdas?”

“Claro, eu compreendo. Estou, pode deixar. As pessoas leem cada vez menos, não é?”

“É… É. E também é preciso ter um coração aberto, e as pessoas estão perdendo a sensibilidade, este mundo moderno, como você vê… Por isso, eu parei de editá-los por um tempo. Faz uns vinte anos, ou mais, que não publico nada de minha autoria, ando muito ocupado, a editora me toma todo o tempo, compreende?”

“Sim, compreendo. Mas o senhor tem que voltar a escrever. Não podemos parar.”

O velho editor tosse, como parece ocorrer com certa frequência, diz que não irá incomodá-lo mais, não quer atrapalhar enquanto esse jovem datilógrafo, cheio de energia, trata de copiar o contrato.

Como? Ele também tem livros? Ele, o experiente editor, não consegue publicar seus próprios livros? É o caso de sentir um pouco de medo. E engolir em seco. “Meus livros são como um remédio amargo”, ele disse, com um arrepio de bom humor. Porque é preciso paciência para chegar ao final, e só então o leitor encontrará uma valiosa lição de vida – ele usa muito palavras como semear e jornada; mesmo assim, parece ser bom. O editor lhe dá um exemplar de presente, e é claro que o jovem contista se força a ler aquela obra o quanto pode – afinal, se não lê os textos dos outros, quem é que lerá os seus, não é mesmo? Sofre calado por muitas páginas, e vê que o velho editor-autor tem toda razão, trata-se de fato de um remédio amargo, indigesto. Corre ao final, às últimas duas ou três páginas: não, não é nada. É apenas amargo, nem mesmo se encontra ali um remédio. Não é a salvação, é a danação, o tipo de autor que Hermann Hesse acreditava condenado ao Inferno, onde terá de arrastar, sob grilhões e correntes, uma legião de leitores, editores, distribuidores, livreiros, funcionários da gráfica, enfim, todas as almas que tiveram de usar seu tempo e sua energia para levar a cabo obras de tal pungência. (Hesse só não esclarece por que as vítimas desses intelectos convictos acabam também no Inferno.) Não é difícil identificar os condenados: são todos os que fazem os outros sofrerem com sinfonias enfadonhas, esculturas incompreensíveis, pinturas acadêmicas e livros chatos.

De qualquer forma, já são lições. Não faça isso jamais, ordena-se ao espelho, cavaleiro das boas letras e um pouco amedrontado consigo mesmo. Não escreva jamais o que essa gente escreve, jogue tudo isso fora. Não escreva nada, se não for absolutamente essencial! Não fique contando coisas e coisas à toa, ninguém quer saber da sua medíocre vida pessoal. Só o que interessa a todos é o seu coração.

As impressões assimiladas nessa única manhã reciclam-se à noite e na manhã seguinte. Estão sendo revistas. Processadas, involuntariamente. No ritmo lento de sua neuroquímica – ele, que se julga tão esperto…. Por trás disso tudo, e à sombra de memórias tão claras, flui algo que não se parece com a verdade, mas que ele não consegue ainda identificar.

Enquanto isso, desperta, veste-se, desloca-se, da precária pensão onde mora, até o trabalho, contribuindo com a continuidade dos dias. Quando se deita, percebe, com o som distante que vem das paredes, a água vibrando macia dentro dos canos (que ele imagina muito velhos) em direção aos reservatórios. Um ruído constante e quase secreto. Mas que lhe serve, de alguma forma. O jovem idealista, entusiasmado e triste, confunde as impressões que circulam por seu sangue com esse surdo fluir de líquidos na escuridão. E adormece, sem entender.

De qualquer maneira, algo começa a consolidar-se. E a solidificar-se. (Não quer usar o verbo cristalizar, que até então prefere: misteriosamente, está percebendo alguma aversão por ele.) Já não se satisfaz em repetir a si mesmo: “Por enquanto, é isso.”. Mais tarde, compreenderá melhor esse contraste entre seu delicado estilo de escrever, seu cuidadoso semear de sentimentos, a obscura leveza de seus sonhos de névoa e aquela pesada caixa de livros nos ombros. A agradável luz do sol que o acompanhou durante todo o penoso percurso. O jovem motivado, seu claro entusiasmo. O editor envelhecido. A miragem se desfazendo. O amplo futuro sendo atirado aos pedaços, em fragmentos informes, a uns rápidos dias já passados, entre o travesseiro e o trabalho. A possibilidade de glória e a desconhecida Rua Rocha. A canção de pedra.

Marcas de gentis predadores

3. Dormindo com as bonecas – sequência

1. O jogo que ele não quer mais – anterior

Guia de leitura

Imagem: Paul Klee. Templo da saudade. 1922.

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